AGRADECIMENTOS


Este livro é o resultado de um trabalho coletivo e, portanto, carrega com ele todas as dificuldades e limitações que envolvem um trabalho de equipe e, particularmente, de um grupo de pesquisadores, professores, alunos e profissionais de Comunicação que buscou conciliar suas atividades com os encontros e debates fundamentais para a elaboração da pesquisa pela busca e elucidação dos resultados.

Nesse sentido, gostaria de agradecer a todos os pesquisadores, incluindo alunos da graduação dos Cursos de Comunicação Social – habilitação em Jornalismo e habilitação em Relações Públicas – da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia que participaram da pesquisa, alguns dos quais, no decorrer do trabalho, concluíram seus cursos e já estão no mercado de trabalho; aos alunos do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da mesma Faculdade, que, estando ou não envolvidos na equipe de pesquisa, colaboraram com sugestões, contatos e tudo o mais que foi solicitado, incluindo a revisão de texto.

Agradeço também aos colegas professores/pesquisadores que participaram da pesquisa e a todos os colegas professores da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia que acompanharam o processo de forma solidária, e, eventualmente, participativa, colaborando com sugestões e com informações
sobre a cidade e sobre as Feiras. 

Da mesma forma, agradeço as Coordenações dos Cursos de Comunicação Social – habilitação em Jornalismo e habilitação em Relações Públicas – da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia, que se dispuseram a abrir espaço na grade de horários para as disciplinas de pesquisa, em um processo no qual a boa vontade e a disposição para ajudar superaram todos os problemas que as mudanças propostas eventualmente causaram. 

De forma especial, agradeço a toda equipe do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, que não se furtou, em momento algum, a dar sua melhor colaboração, particularmente a Coordenação e a Secretaria, que muitas vezes tiveram seus espaços invadidos e seus computadores utilizados pela equipe de pesquisadores, e jamais proferiram palavras que não fossem de incentivo e cooperação.

Agradeço também a Direção da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia, que não apenas acompanhou o processo de pesquisa, mas apoiou todas as fases do seu desenvolvimento. 

Também estiveram conosco nesta jornada a Coordenação e a equipe do Mestrado em Comunicação e Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marketing, com a qual temos um convênio formal, mas cujas ações em conjunto e a colaboração extrapolam os limite da formalidade e se inserem em relações de coleguismo e amizade.

Sobretudo agradeço as nossas entrevistadas, as feirantes expositoras nas Feiras do Sol e da Lua e em muitas outras feiras que visitamos nas primeiras fases desta pesquisa, que dispuseram de horas preciosas de trabalho e de lazer para nos contar um pouco de suas vidas, suas lutas e suas conquistas, que, de muitas maneiras, representam também as lutas  e conquistas de todas as mulheres brasileiras.

São elas, as feirantes/expositoras, verdadeiramente, as autoras deste livro. E é a elas que ele é dedicado.


Ana Carolina Rocha Pessoa Temer 

Coordenadora do Projeto de Pesquisa
Influências da Mídia na Inserção da Mulher no Mercado
Informal de Trabalho: Cidadania, Mulher e Trabalho

PREFÁCIO


O filósofo italiano Norberto Bobbio disse, em uma conferência em 1983, em Milão, que o futuro seria feminino, porque, segundo ele, o mundo necessita de pessoas dóceis, que tenham um olhar compreensivo para com os outros, e esses seriam atributos das mulheres. Passados quase trinta anos, ainda não sabemos dizer se a afirmação era uma profecia ou uma constatação do já dado. O fato é que, em 2012, as mulheres vivenciam uma situação singular no planeta, oscilantes entre a condição de sujeitos de poder e assujeitadas aos poderes mais banais. Com efeito, ao mesmo tempo em que temos mulheres com cargos de chefes de Estado em países importantes, temos mulheres vitimadas pela violência doméstica, cerceadas em sua corporalidade e discriminadas no trabalho, como se constata no último censo brasileiro: as mulheres recebem menos apesar de desenvolverem a mesma função que os homens.

Por isso mesmo, enquanto persistir uma situação tão ambígua com relação à mulher, livros como este devem ser comemorados e incentivados. Posições tão antagônicas, quase como “da lua e do sol”, justificam que pesquisas tentem entender o lugar da mulher na sociedade. O consumo, que muito marca a nossa época, revela facetas um tanto quanto infantilizadas do mundo feminino, ao mesmo tempo em que as produções midiáticas definem como público-alvo a mulher. A mídia concentra-se na mulher porque, segundo definiu o marketing, é ela quem faz as compras, portanto é quem se responsabiliza pela demanda que movimenta o mercado.

Entretanto, para além da definição das marcas a serem inseridas no ambiente doméstico, o papel histórico da mulher equipara-se ao do homem nas funções sociais, assumindo postos de trabalho com igual competência, igualitariamente. Mas enquanto a paternidade começa a experienciar uma ambiguidade histórica, o lugar da mulher como responsável pela geração não foi até agora superado. Nesse lugar, a mulher permanece como fundamental, a raça humana não prescinde da mulher para a sua continuidade. Ponto. Um argumento meramente biológico? Talvez sim, como ponto de partida, mas as suas reverberações em todos os campos – sociais, psíquicos, econômicos e políticos – são inegáveis e estão ai, dispostas no quotidiano dos quatro cantos do mundo a explicarem, quem sabe, as inúmeras tentativas de controle e dominação.

Diante desse fato irrefutável, e talvez por isso mesmo, o universo masculino tenta, desde os primórdios, controlar o fato singular da geração/sexualidade feminina. Elucidativo e atualíssimo é o velho estudo de Morgan, sobre o qual Engels escreveu o seu maravilhoso Origem da família, da propriedade privada e do Estado, indicando as tentativas de controle por meio das interdições da relação sexual, sempre com o propósito de resguardar a linhagem e assim manter o domínio sobre bens e propriedades.

Como é possível dizer –– como vemos com razoável frequência, e nas mais diversas áreas –– que esta é uma temática datada e que trabalhos sobre gênero estão em descompasso com o paradigma universalista da civilização atual se ainda somos obrigadas a conviver, quotidianamente, com posturas preconceituosas em nossos trabalhos, famílias e grupos? E o que falar da mulher que, para ser respeitada e conseguir um lugar no mundo masculino, passa a adotar posturas masculinas e assume mesmo um padrão comportamental exatamente igual ao já conhecido e exercido pelos homens, deixando completamente de lado a exigência humana do cuidado com o outro, com o lugar, consigo mesma, a docilidade de que falava Bobbio, que tanto a define?

Desde Aristóteles, que se baseava em aspectos médico-filosóficos para distinguir a natureza do homem (quente, seco e animado) e da mulher (fria, úmida e inerte), passando pela filosofia taoista onde o Yin é feminino – a terra, frio, a sombra, o norte, a chuva e o inferior – e o Yang é masculino – o céu, o calor, a luz do sol, o sul, a superioridade –, até chegarmos a dados demonstrativos de que a pobreza global também é feminina (já que o grupo humano na miséria é composto de 70% de mulheres), o lugar hegemônico do masculino tem pautado historicamente as nossas sociedades.

Não podemos deixar de admitir, entretanto, que há avanços na direção de um mundo mais plural. As cotas para mulheres nos partidos e o reconhecimento de que as profissões e tarefas não são atributos de gênero certamente têm produzido uma possibilidade de convivência mais ecológica. Mas é preciso sempre estar atento para o fato de que a jurisprudência nem sempre garante o movimento do tecido social e que os pré-conceitos devem ser combatidos em âmbitos para além do discurso racional. 

No horizonte do senso comum vigente na esfera pública, constituída em grande parte pela instância midiática, fica o lugar de entrincheiramento de todas nós, mulheres. E, para a grande luta, é preciso estar atento às composições armamentistas atualmente em voga. Ou seja, armar-se apenas da proposição conteudística da produção midiática não vai nos fazer aproximar da superfície que tanto toca, convence e forma o juízo comum. É preciso estar aberto para analisar as novas facetas desse fenômeno, e é para este caminho, partindo da feira livre, as Feiras do Sol e da Lua, com seus cheiros, suas cores, suas vozes e seus suores, que este livro quer nos convidar. Temos que aceitar o chamado e embarcar.



Raquel Paiva
Professora e pesquisadora, autora do livro Polícia: palavra feminina,
publicado em 2008, pela Editora Mauad, Rio de Janeiro.

MÍDIA, MULHER E CONSUMO


APRESENTAÇÃO

Este trabalho é o resultado de um projeto de pesquisa realizado na linha de pesquisa Mídia e Cidadania, do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia da Universidade Federal de Goiás, com o apoio do CNPq, inicialmente intitulado Influências da Mídia na Inserção da Mulher no Mercado Informal de Trabalho: Mulher, Cidadania e Consumo. A proposta deste estudo incluía aprofundar a análise da influência da mídia na relação entre cidadania, mulher e trabalho, tendo como foco principal perceber de que maneira e em que medida os programas femininos – ou revistas femininas na Televisão – influenciam o processo de inserção das mulheres sem formação acadêmica e/ou profissionalizante no mercado de trabalho informal. Já a proposta da pesquisa incluía aprofundar a análise da influência da mídia na relação entre cidadania, mulher e trabalho, tendo como método a Análise de Conteúdo e os Estudos de Recepção. Para esta pesquisa especificamente, o grupo de mulheres de interesse foi identificado entre as proprietárias de bancas/barracas nas Feiras da Lua e do Sol, em particular, mas também em outras feiras congêneres, que são espaços predominantemente femininos e já tradicionais na cidade de Goiânia. Essas feiras atraem um grande número de consumidores, especialmente mulheres – inclusive sacoleiras e revendedoras de diferentes produtos –, em busca de produtos com custo acessível, sobretudo em moda feminina, acessórios diversos, artesanato e produtos de alimentação tanto para consumo imediato, quanto para “levar para casa”.

Em torno desta proposta, sob a minha coordenação reuniram-se de forma permanente três pesquisadoras seniores, três pesquisadoras juniores (uma mestre e duas mestrandas) e, com um grau de participação mais eventual, alunos do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia, especialmente do curso de Mestrado, além de quatro grupos de alunos da Graduação dos Cursos de Comunicação Social – habilitação em Jornalismo e habilitação em Relações Públicas – da mesma faculdade.

Essa equipe, a partir de uma organização interna definida, desenvolveu os estudos com a finalidade de identificar como alguns elementos presentes nos discursos dos chamados Programas Femininos – ou revistas
femininas na Televisão – veiculados em diferentes horários da televisão brasileira de sinal aberto são utilizados pelas mulheres residentes em Goiânia, na área circunvizinha ou área de influência, para desenvolver atividades artesanais ou semi-industrializadas que permitam a inserção e permanência delas nas chamadas 'feiras' (particularmente a Feira da Lua e do Sol) e outros espaços de comercialização, ou ainda, obter informações que as ajudem a ingressar e/ou se manter no mercado de trabalho informal, particularmente nos setores vinculados à culinária, moda e beleza.

A amplitude da pesquisa envolveu tanto aspectos quantitativos quanto qualitativos, mas sempre buscando compreender quais são as informações divulgadas pela televisão, de uma forma geral, e pelas revistas femininas, em particular, que são absorvidas e efetivamente utilizadas pelas mulheres que trabalham nestes locais. Buscou-se entender particularmente se estes programas conclamam a mulher a ganhar seu próprio dinheiro e contribuir com o orçamento familiar, eventualmente incentivando-as a atuarem no mercado informal, e de que forma isso interfere na vida destas mulheres. Partindo desse ponto, buscou-se também entender como a construída imagem de mulher independente financeiramente se reflete na busca por atividades ligadas à informalidade e nos aspectos práticos de suas atividades.

Revistas femininas veiculadas pela televisão apontam ou insinuam que produtos ou atividades artesanais ou semi-industriais podem ser comercializados e representar fonte de renda. Como ocorre a recepção dos elementos presentes nos discursos desses programas e como eles resultam em atividades que interferem ou criam condições para que este grupo particular de mulheres se insira de forma ativa na busca por uma renda própria e pelos direitos pessoais e profissionais, no exercício da cidadania e na prática do consumo, são questões que norteiam este trabalho.

Em termos mais abrangentes, a pesquisa buscou analisar como a mídia influencia nas relações de trabalho e na consolidação da cidadania entre as mulheres, tendo como problemas norteadores três questões, que são: 

• as revistas femininas veiculadas pela televisão brasileira de sinal aberto efetivamente contribuem para inserir a mulher, com deficiência na formação acadêmica e/ou profissionalizante, no mercado de trabalho informal?
• Como as informações veiculadas nestas revistas interferem nas relações econômicas, profissionais, sociais, de cidadania e de consumo destas mulheres? 
• O desenvolvimento de um produto – programa de televisão – específico para este público pode contribuir para melhorar as condições de trabalho e práticas cidadãs? 

No decorrer da pesquisa, como deve acontecer nos estudos que efetivamente se baseiam em descobertas e não apenas na intenção de provar hipóteses aparentemente irrefutáveis, algumas relações surpreendentes obrigaram os pesquisadores a rever a proposta inicial de estudos, e ficou clara a necessidade de se incluir  nesta análise questões não pensadas inicialmente na proposta do trabalho, mas que vieram à tona nas entrevistas e depoimentos do grupo analisado.

De fato, durante parte das entrevistas foi ressaltada a importância de outros produtos/programas veiculados na televisão, em especial as telenovelas e o telejornalismo. Dessa forma, ainda que a primeira parte da pesquisa se desenvolvesse conforme o previsto na proposta original, uma segunda fase destes estudos  mostrou-se necessária. Da mesma forma, os dados obtidos entre as pesquisadas também levaram os pesquisadores a aprofundarem-se nas questões relativas à faixa de renda das entrevistadas. 

Apesar destas informações, em alguns aspectos surpreendentes, foram mantidos os objetivos propostos na pesquisa inicial, o que inclui entender como as mulheres goianienses que participam das feiras – que possuem barracas/bancas na Feira da Lua, além de outras feiras voltadas para comercialização de confecções (Feira do Sol, Feira Hippie, Feira da Praça Universitária etc.), roupas e artesanatos – elaboram a relação com o trabalho, o emprego e a vida em sociedade; quais são os valores relacionados à independência financeira da mulher; como elas se percebem atuando na informalidade; qual a credibilidade dos programas femininos para esse público; e como as mulheres recebem as dicas e sugestões dos programas femininos. 

Para responder essas questões, o trabalho foi desenvolvido em várias etapas, da seguinte forma: a primeira, referente à análise de conteúdo dos programas femininos na televisão, com ênfase nas informações e nos discursos veiculados por estes programas; a segunda, um estudo de recepção mediante entrevistas estruturadas e semiestruturadas, o que incluiu cerca de 15 visitas às Feiras do Sol, da Lua e outras com perfil similar; uma última etapa, decorrente dos resultados obtidos, que levou as pesquisadoras a reverem os conteúdos da televisão, analisando criticamente aspectos descritos pelas entrevistadas. Fechando o ciclo da pesquisa, o material foi organizado e debatido pela equipe e, a partir desta discussão, foi elaborado um vídeo sobre a feira e este livro.

Embora não prevista inicialmente, a volta dos pesquisadores ao ponto de origem da pesquisa – a análise do conteúdo da mídia – significou também o fechamento de um ciclo e permitiu o melhor entendimento da importância deste veículo na vida das empreendedoras que participam das feiras goianas. 


METODOLOGIA

Uma vez que o objetivo era aprofundar a reflexão sobre o conteúdo da produção midiática na televisão e tendo como ponto de partida este conteúdo, entender o modo como as mulheres percebem, apropriam-se e aplicam as informações da mídia no seu cotidiano, particularmente nos aspectos ligados ao acesso a uma atividade remunerada e, por meio dela, à autoestima, ao consumo e à cidadania, é que se optou pela realização da pesquisa em diferentes frentes de trabalho.

Inicialmente, foi realizada uma longa revisão de literatura sobre o tema, ponto inicial de todo trabalho acadêmico. Em seguida, optou-se por uma análise do conteúdo da televisão, na qual o ponto central foram os programas femininos, ou, como fica delimitado neste trabalho de pesquisa, as revistas femininas na televisão.

A escolha desses programas ocorreu particularmente em função de suas características básicas, como a valorização da mulher e do eterno feminino, mas também em função de elementos específicos mais recentes, como a valorização do próprio trabalho doméstico e o destaque que vem sendo dado à necessidade de a mulher ter uma ocupação remunerada e contribuir de diferentes formas para a renda familiar. Dessa forma, fez-se um acompanhamento inicial dos principais programas que se encaixam neste modelo e, a partir daí, verificam-se os pontos básicos do seu conteúdo.

O passo seguinte foi o contato com as proprietárias das bancas/barracas na Feira da Lua, escolhida como ponto básico da pesquisa em virtude de sua dimensão – é a maior em número de expositores e visitantes entre as feiras deste tipo em Goiânia, ficando atrás somente da Feira Hippie, que tem um perfil misto (confecção e revenda de produtos diversos, além do setor de alimentação). Essa fase foi realizada em diferentes etapas, entre elas a aplicação de questionários objetivos sobre aspectos relacionados a perfil de renda, ocupação e outros elementos quantificáveis, e a realização de entrevistas semiestruturadas com perguntas abertas sobre a relação destas comerciantes informais com a televisão – programas preferidos, tempo de lazer, a relação entre o que veem na televisão e o seu trabalho – e, como elemento final, entrevistas em profundidade realizadas individualmente e de forma isolada (fora do contexto da feira) com um pequeno grupo de mulheres, abordando aspectos que envolviam a memória afetiva da televisão, a percepção sobre o papel da mulher na família, as relações sociais de uma forma geral e como a televisão cria e alimenta fantasias que se consolidam na percepção destas receptoras como ambições e desejos.

Sobre a metodologia de pesquisa, é importante acrescentar que estava prevista a realização de grupos focais com segmentos de mulheres que participam da Feira da Lua. No entanto, apesar de alguns encontros terem sido efetivamente agendados, as convidadas/pesquisadas não compareceram. O grupo de pesquisadoras chegou mesmo a marcar uma destas reuniões em um salão de beleza, oferecendo às pesquisadas a possibilidade de financiar tratamentos de baixo custo, mas, ainda assim, não houve interesse na participação. Os aspectos específicos desta falta de interesse serão igualmente comentados na análise de dados.

A partir deste ponto, as pesquisadoras optaram pela aplicação de questionários direcionados para dados quantitativos, a realização de entrevistas estruturadas, efetivadas durante a própria realização das feiras, ou seja, no local de trabalho do grupo pesquisado, e semiestruturadas, realizadas antes das montagens das barracas. As entrevistas foram efetuadas no mesmo período de tempo, mas não com as mesmas entrevistadas. Grupos distintos de pesquisadores percorreram partes diferentes da feira, tendo sido atribuído a dois segmentos de alunos de graduação em Comunicação a realização das entrevistas estruturadas e semiestruturadas. Em uma etapa posterior, as pesquisadoras juniores selecionaram algumas participantes da Feira da Lua e, a partir desta seleção, realizaram entrevistas em profundidade.

Coletados e tabulados os dados quantitativos e qualitativos, o conjunto do material foi analisado, considerando inclusive os resultados obtidos pelos diferentes grupos. Em uma etapa final, os grupos se reuniram para discutir resultados, realizando cruzamento não apenas dos dados obtidos, mas das inferências individuais e da análise do desenvolvimento dos levantamentos.

É importante acrescentar que o caminho metodológico – a pesquisa de campo, as análises dos dados qualitativos, em que os dados quantitativos são utilizados como uma qualidade a mais a ser compreendida – foi adotado com base na percepção de que esses métodos possibilitavam uma maior aproximação com o objeto de pesquisa – no caso, as mulheres feirantes/expositoras das Feiras da Lua e do Sol –, possibilitando
igualmente análises mais subjetivas dos dados. Dessa forma, a pesquisa teve como diretriz a 

construção teórica do objeto de estudo, [de forma a permitir que o campo se tornasse] [...] um palco de manifestações de intersubjetividades e interações entre pesquisador e grupos estudados, propiciando a criação de novos conhecimentos (MINAYO, 1998, p. 54).
Ainda que em muitos momentos o andamento da pesquisa não se detivesse apenas nos limites impostos pelos métodos de trabalho, considerando as especificidades destes métodos, é importante conhecê-los de forma mais aprofundada. 


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS

A primeira base teórica que foi considerada para o desenvolvimento deste trabalho foi a chamada Teoria dos Usos e Gratificações. Em princípio, essa reflexão teórica é considerada um desdobramento da Teoria Funcionalista, uma vez que foi desenvolvida por pesquisadores norte-americanos que, de forma direta ou indireta, também estavam envolvidos em uma perspectiva pragmática dos Estudos da Comunicação.

Ainda assim, a hipótese dos usos e das gratificações representa também uma evolução desta perspectiva, pois trabalha apoiada na visão de um receptor ativo, entendendo que a adoção de um modelo de conduta ou de ação por um indivíduo é resultante de alguma gratificação, de alguma forma de recompensa ou de conhecimento que seja útil a sua vida, tanto nos aspectos práticos – como, por exemplo, informações sobre economia e finanças que ajudem na condução dos próprios negócios –, quanto em aspectos não palpáveis, como o alívio das tensões, a construção de uma autoimagem agradável, o sentimento de participação de um grupo ou qualquer outro sentimento ou sensação que resulte em alguma forma de gratificação ou prazer.

A hipótese dos usos e das gratificações indica ainda que os meios de comunicação atuam também no reforço aos hábitos que resultam em padrões estáveis de respostas, em repetições de ações que exibam experiências agradáveis ou sensações de algum tipo de prazer – sensações de vitória ou de poder, de domínio de um conhecimento ou de reconhecimento de uma experiência, para citar alguns exemplos.

Essa hipótese ainda está enraizada em uma postura positivista das ciências sociais, mas aplicada aos Estudos da Comunicação, que se caracteriza por enfatizar as funções do uso em detrimento ao uso como função, ou seja, os estudos desenvolvidos a partir da hipótese dos usos e das gratificações, ou, como é chamada por Wolf (1988), o estudo das satisfações, que tem como objetivo entender o tipo de consumo que o público faz das comunicações de massa.

Como este trabalho indicará, as propostas de análise desenvolvidas com base na hipótese dos usos e das gratificações são mais complexas que uma simples análise de dados quantitativos, exigindo a compreensão ampla do quadro social em que os processos de comunicação a serem estudados estão efetivamente inseridos, entendendo também que as necessidades dos destinatários são consideradas uma das variáveis que delimitam os efeitos da comunicação.

Nesse sentido, podemos dizer que a pesquisa foi desenvolvida a partir de três princípios norteadores,
quais sejam:

• o indivíduo/receptor é ativo e busca nos meios de comunicação os conteúdos que melhor atendam suas necessidades e seus desejos;
• os motivos que levam à escolha de meios de comunicação e de seus conteúdos específicos estão sujeitos a
inúmeras influências psicológicas, sociais, ambientais e conjunturais;
• a exposição aos meios compete com outras formas potencialmente capazes de satisfazer/gratificar suas necessidades e anseios. Dessa forma, o indivíduo poderá escolher expor-se aos meios de comunicação ou procurar formas de gratificação a eles não relacionadas, de acordo com suas necessidades e objetivos, ou seja, a exposição aos meios é um ato intencional, não casual.


GÊNEROS E MEIOS DE COMUNICAÇÃO

Além da hipótese dos usos e das gratificações, a base teórica da pesquisa também considera a questão dos gêneros da comunicação, seja dos gêneros televisivos, seja dos gêneros jornalísticos, entendendo que os diferentes gêneros abrem a possibilidade de diferentes construções de sentido.

Sentidos são produtos sociais resultantes das atividades humanas em um processo de interação social constante. Os processos comunicativos e, especialmente, as relações intersubjetivas determinam a origem do sentido, organizando e dando forma ao funcionamento da vida em sociedade. A ação da comunicação é, em si, a ação de tornar um sentido comum, a ação de transformar um estímulo em informação.

Vivemos em um mundo de processos comunicativos que se intercalam e se sobrepõem, mas que também constroem sentidos. No entanto, cada indivíduo percebe múltiplos sentidos que se agrupam e se inter-relacionam, aos quais atribui significados. Segundo a Teoria Gestalt, isso ocorre em função da reintegração, ou seja, porque o ser humano sempre percebe configurações globais, e não especificidades isoladas. É a esse conjunto de sentidos – um novo sentido – que atribuímos o termo rótulo ou gênero.

Gênero, portanto, é antecipação da construção de um sentido a com base em um conjunto articulado de sentidos, um conjunto de atribuições socialmente construídas que permitem ao indivíduo classificar experiências e conhecimentos de forma a reconhecê-los com relativa facilidade, mesmo que não estejam presentes todas as atribuições que ele vincula ao gênero em questão.

Uma vez construído, por interações sociais o gênero permite prever um espectro possível de ações e reações futuras, dando ao indivíduo elementos nos quais pode-se basear para direcionar suas ações. Os gêneros são, portanto, elementos de mediação que facilitam, organizam e antecipam as experiências na recepção dos conteúdos da comunicação, pois impedem o caos cognitivo, a desorganização mental, e constituem um instrumento necessário de economia na aprendizagem. Quanto mais complicada é a vida moderna, mais os receptores buscam se agarrar a determinados gêneros da mídia, a determinados conjuntos de conteúdo, pois eles organizam os espaços nos quais buscam as informações, hierarquizam dados, agindo como elementos de pré-decodificação que facilitam sua relação com os meios de comunicação.



A ANÁLISE DE CONTEÚDO COMO MÉTODO DE PESQUISA

A análise de conteúdo é um método de trabalho científico e uma técnica de investigação cuja origem documentada remonta ao final do século XIII1 e que está presente nos estudos sobre comunicação desde os primeiros trabalhos de communication research. Em geral, a análise de conteúdo recebe críticas dos autores ligados às tradições marxistas de pesquisa em função de uma possível vinculação com o positivismo comteano2

No entanto, o método ganhou novo vigor nas últimas décadas do século XX em função de sua adaptabilidade à pesquisa com tecnologias eletroeletrônicas de comunicação e de uma tendência de utilização na esfera do ativismo político (FONSECA JUNIOR, 2006, p. 281). Finalmente, as críticas têm sido superadas pelos autores modernos que, assim como está sendo feito nesta pesquisa, se pautam pela noção de que “o trabalho crítico não se define pelas técnicas que utiliza” (LOZANO, 1994, p. 12) (mas pelo nível de compreensão do fenômeno que alcança).

A análise de conteúdo é também proposta de trabalho que visa superar os dados subjetivos, e se organiza a partir da sistematização imposta pelo próprio desenvolvimento dos processos de comunicação mediados (KIENTZ, 1973, p. 10). Dessa forma, a análise de conteúdo pretende sempre uma discrição objetiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto da comunicação. Trata-se, portanto, da busca por dados objetivos ou, dito de outra forma, por uma análise objetiva que, desde o início, propõe-se a responder uma questão, a atingir um ‘objetivo’.

Apesar da objetividade do método, os pesquisadores que utilizam a análise de conteúdo devem trabalhar a partir de marcos teóricos profundos e bem definidos, possibilitando uma definição de conceitos coerentes e suficientes para a criação de parâmetros que possibilitem a elaboração e a aplicação de ferramentas estatísticas. O ponto central do método está na qualidade da definição dos conceitos, categorias, tipos, gêneros ou formatos, ou qualquer outra denominação adotada para qualificar, selecionar e mensurar o conteúdo da comunicação. 

Obtidos os dados, a análise de conteúdo deve também buscar a incorporação de informações de outros tipos ou de diferentes procedências, como, por exemplo, dados bibliográficos.

Nesse sentido, a análise proposta neste estudo, vai se pautar pela constituição de um corpus de pesquisa, ou amostragem, que respeite concomitantemente a exaustividade, observando indistintamente todas as revistas femininas e outros conteúdos da televisão exibidos no período estudado; e a representatividade, que deve ser ampla o suficiente para garantir a presença das variáveis possíveis.

Sobre o conjunto desta análise, é importante também destacar a crítica feita por Berelson (apud Bardin, 1988, p. 20), um dos pais do método, de que a análise de conteúdo não possui qualidades mágicas e que nada substitui a colaboração de bons pesquisadores. Dessa forma, embora a análise de conteúdo se baseie em dados objetivos, não deve deixar de lado as inferências3, reproduzíveis e válidas que podem se aplicar a seu contexto (Krippendorff , 1990, p. 29).

O uso da Análise de Conteúdo não impede a utilização em paralelo com outras técnicas de pesquisa. De fato, a parceria com outras técnicas de pesquisa tem sido uma das tendências mais fortes entre os pesquisadores da comunicação latino-americanos que utilizam a análise de conteúdo4.

Além desses aspectos, a pesquisa realizada teve também como especificidade a admissão de que, para entender a comunicação de massa, é essencial a compreensão do quadro social em que essa comunicação está efetivamente inserida.


A TEORIA DA AGENDA

Para o melhor desenvolvimento desta pesquisa, que se detém também aos aspectos específicos da recepção, é necessário considerar de forma indireta a teoria da agenda, ou hipótese da Agenda Setting.

Essa hipótese defende que os meios de comunicação eletroeletrônicos apresentam ao público uma lista daquilo sobre o que é necessário ter uma opinião. Ou seja, a televisão e outros meios colocam na agenda interpessoal dos seus receptores os temas a serem discutidos, ou que se tornaram objeto de suas preocupações.

A teoria da agenda se aplica particularmente aos conteúdos da imprensa, que apresentam ao público uma lista dos principais assuntos, próximos e distantes, dessa forma construindo grande parte da realidade social. Na perspectiva da teoria da agenda, a imprensa não diz às pessoas o que elas devem pensar, mas sobre quais temas devem pensar, o que não deixa de ser também uma forma de controle. Ou, ainda, os meios de comunicação e particularmente a imprensa, não agem no sentido de persuadir – ou não apenas neste sentido –, mas, ao formar uma agenda interpessoal, delimitam as possibilidades de o receptor ver e entender o mundo ao seu redor.


A ENTREVISTA COMO MÉTODO

A entrevista vem sendo utilizada como ferramenta e método de pesquisa nos Estudos em Comunicação há muitas décadas, estando presente desde os estudos fundadores da área com a chamada Escola de Chicago. Para os estudiosos da comunicação, a entrevista é um método tradicional e relevante, pois é, em si e por si,
um processo comunicacional.

Particularmente para os pesquisadores da comunicação oriundos do Jornalismo, as respostas obtidas por meio das entrevistas são mais ricas e com maior potencial de análise do que as respostas obtidas por meio de questionários, uma vez que os significados das palavras são esclarecidos durante a própria entrevista, o que minimiza ou evita as distorções nas respostas. Além disso, em que pesem as diferenças entre a entrevista jornalística e a obtenção de dados para um estudo científico, trata-se de um método familiar aos graduados em Jornalismo, que facilmente conseguem transitar para essa modalidade e obter, por meio dela, dados relevantes.

O mérito da entrevista está justamente em permitir ao entrevistador a análise de critérios subjetivos, por meio de uma contínua reinterpretação dos conteúdos/fala dos entrevistados, uma vez que, durante o processo de entrevista, o entrevistado participa de um processo de co-construção do conhecimento, reformulando dados e interpretando-os ao mesmo tempo em que responde a questão proposta.

Dessa forma, os dados coletados por meio das entrevistas vão além da objetividade adquirida por dados simples de um questionário, pois são construídos em função das reflexões do sujeito sobre o que lhe é perguntado.

O método também tem o mérito de ser mais aberto e flexível, possibilitando a abertura a todo um conjunto de fenômenos passíveis de serem descritos pela experiência humana. Além disso, a entrevista, como ferramenta, é especialmente relevante porque, no momento da sua realização, enquanto pesquisador e pesquisado estão em contato direto, em um processo de comunicação interpessoal, estão também construindo significados e conceitos, que emergem e desvendam o fenômeno estudado, configurando novas zonas de interpretação de resultados.

Embora vários tipos de entrevistas possam ser usados nos estudos de comunicação, aspectos como praticidade e clareza nos resultados desejados fizeram com que nesta pesquisa se optasse pelo uso de entrevistas estruturadas, ou seja, entrevistas realizadas a partir de um roteiro previamente definido, que foi seguido pelo pesquisador, e entrevistas semiestruturadas, na qual o mesmo roteiro pode ser acrescido de novas perguntas, a critério do entrevistador, quando o entrevistado apresentou dados relevantes que não estavam previstos no roteiro original. Assim, escolheu-se a entrevista como técnica de pesquisa entendendo-se que este método é capaz de fornecer informações objetivas e subjetivas a partir de “perguntas controladas pela teoria e direcionadas para as hipóteses” (FLICK, 2009, p. 149). Ou seja, coube ao entrevistador ficar atento para direcionar a entrevista para o assunto da pesquisa no momento oportuno e ter a sensibilidade de saber quando deve interromper o roteiro original para acrescentar novas questões e, esgotado este aspecto novo, retornar ao roteiro inicialmente previsto.

Coube ao entrevistador, portanto, sobretudo provocar a memória dos entrevistados, criando situações em que as respostas obtidas sejam fidedignas e válidas; seguindo o preceito de que “[...] não se deve tentar descobrir conceitos teóricos, mas sim a esfera de vida das pessoas” (FLICK, 2009, p. 161).

Quanto à interpretação dos dados construídos durante as entrevistas, os pesquisadores consideraram que os pesquisados representam uma visão do mundo única e peculiar, e cuja análise deverá ser confrontada e enriquecida com as informações obtidas por meio das demais metodologias de pesquisa previstas no projeto.

A entrevista, portanto, é vista neste trabalho como um elemento gerador de novos conhecimentos, co-construídos com os entrevistados, que permitem delinear em aspectos amplos seus interesses pessoais, sua capacidade interpretativa de ressignificação das mídias e sua inserção social, sendo, portanto, um método adequado às necessidades da pesquisa proposta.

Ainda sobre a realização das entrevistas, convém acrescentar que o roteiro levado a campo foi elaborado após a realização da análise de conteúdo, contendo em média 15 questões que eventualmente foram ampliadas ou desdobradas a critério do entrevistador, ou ainda reelaboradas de forma que o grau de complexidade ou de exigência de detalhes para com o receptor estivesse sempre crescente. Ou seja, a entrevista iniciou-se com perguntas simples que foram sendo aprofundadas no seu desenvolvimento.

Após as entrevistas, a documentação e o registro de dados foram efetuados a partir da transcrição das gravações das entrevistas, tendo sido os dados classificados a partir de critérios determinados e temas em comum.

A aplicação dos diferentes tipos de entrevista, conforme dito, foi realizada sempre por um pesquisador membro do projeto, participante de grupos organizados de acordo com o grau de complexidade que a entrevista exigia.







NOTAS

1 O primeiro trabalho de análise de conteúdo é atribuído a uma procura sistemática pelos membros da corte suíça na análise de 90 hinos religiosos anônimos, denominados Os cantos do Sião em busca de provas de heresia (FONSECA JÚNIOR, 2006, p. 280).
2 Corrente de pensamento desenvolvida por Augusto Comte, o positivismo valoriza as ciências exatas como paradigma de cientificidade e como referência do espírito humano em seu estágio mais elevado (FONSECA JÚNIOR, 2006, p. 281).
3 A inferência é uma operação lógica que analisa os índices postos em evidência pelos dados numéricos para, a partir desses dados, deduzir de maneira lógica novos conhecimentos sobre os emissores e suas intenções e quaisquer outros aspectos relevantes. A inferência dá ao pesquisador as condições para “evidenciar o sentido que se encontra em segundo plano” (FONSECA JÚNIOR apud DUARTE, 2004, p. 299), permitindo a análise da articulação do sentido do texto e das condições de produção da mensagem.
4 Na América Latina, a difusão da análise de conteúdo é atribuída ao Centro de Estudos superiores em Jornalismo para a América Latina (Ciespal) por meio dos estudos em jornalismo comparados realizados por Jacques Keyser e do seu trabalho de maior impacto na região, Dos semanas em la prensa de América Latina (MARQUES DE MELO, 1972).

I FALANDO SOBRE MULHERES - A MULHER E O TRABALHO


Como a televisão influencia a mulher trabalhadora, empreendedora e expositora nas feiras de Goiânia? Uma resposta se impõe: não se trata de uma influência linear, que possa ser descrita em poucas palavras. De fato, para melhor compreender a relação entre a mulher expositora e a televisão é necessário passear mais longe e compreender um pouco mais também a própria mulher e, de forma mais específica, a mulher brasileira.

A história do ocidente judaico cristão alimentou e justificou o imaginário popular que hoje torna as mulheres vítimas culturais da desconfiança humana, muitas vezes justificando a necessidade de mantê-las reclusas em suas casas, sendo apenas aceitáveis no espaço público quando acompanhadas e/ou tuteladas por um Homem.

Essa cultura destinou às mulheres o espaço doméstico e, consequentemente, o trabalho doméstico, ou seja, as funções das mulheres deveriam ser restritas a cuidar da casa e da própria prole, pelo menos nos anos iniciais da sua formação, e cuidar da própria estética como forma de atrair e manter o seu parceiro. De fato, na antiguidade as mulheres que não se restringiram a estes espaços ou não se submetiam a tais condições foram excluídas do convívio social e taxadas como ameaças: bruxas a serem queimadas, loucas a serem entregues aos manicômios ou prostitutas limitadas aos prostíbulos.

O trabalho feminino, embora restrito a estes espaços, nunca foi pouco ou fácil. No campo ou na cidade, as atividades da mulher de baixa renda eram em geral pesadas e exaustivas, e, embora a situação fosse diferente em outras classes sociais, de uma forma geral o ócio feminino não era tão comum como algumas representações preconceituosas nos levam a crer. A situação sofre algumas alterações com o crescimento das cidades e particularmente depois da revolução industrial na Europa, quando a exigência por mão de obra desloca a mulher pobre do espaço doméstico para as fábricas.

Embora submetidas a salários inferiores aos oferecidos aos homens e a condições de trabalhos lamentáveis, nas quais eram comuns vários tipos de abusos, inclusive sexuais, as mulheres avançaram lentamente pelo mundo do trabalho remunerado, eventualmente aproveitando-se de situações específicas – como, por exemplo, a necessidade da mão de obra feminina em tempos de guerra – para consolidar a sua posição. Evidentemente, esse avanço não se deu de forma homogênea. De fato, as mulheres brasileiras, e especialmente as das regiões mais interiorizadas do país, só ingressaram de forma mais ampla no mercado de trabalho a partir da década de 1970.

Inseridas em uma sociedade marcada pela colonização e pela exploração dos recursos naturais, ou seja, por atividades econômicas que excluíram a mão de obra feminina dos trabalhos remunerados a história destas mulheres é, portanto, a história também da não escolarização, de um ciclo de atividades domésticas nas quais impera o pouco contato com os livros e com a educação formal.

Em linhas gerais podemos afirmar que durante esses primeiros trezentos longos anos de formação da vida em sociedade no Brasil as mulheres, assim como outros segmentos sociais, estiveram a serviço da manutenção dos interesses de padres e portugueses, calcados na afirmativa de que os ‘donos do poder’ sempre mandaram (RIBEIRO, 2012, p. 2).
Durante boa parte da história, as mulheres brasileiras estavam, em sua maior parte, confinadas ao exercício de trabalhos considerados femininos, mesmo quando, por qualquer motivo, saíam da tutela masculina e/ou precisavam amealhar recursos que garantissem a sua sobrevivência. 

No Estado de Goiás, marcado pelo afastamento dos grandes centros localizados nas proximidades do litoral do país, a colonização marcada pela exploração de ouro e, mais tarde, pela grande propriedade voltada para a criação de gado bovino dá pouco destaque à presença feminina, atribuindo às mulheres os papéis clássicos da dona de casa prendada e, no espaço marginal, da prostituta.

Mesmo com a implantação de Goiânia – a capital do Estado projetada pelo arquiteto Atílio Côrrea Lima a convite do então interventor do Estado, Pedro Ludovico Teixeira –, a presença feminina no espaço público ainda era restrita a alguns exemplos, em geral ligada à burguesia local. O acesso das mulheres ao trabalho remunerado torna-se mais visível com a implantação de Brasília, mas ainda assim em um processo lento cujas consequências são visíveis até os dias atuais.

De fato, a reestruturação produtiva fruto dos processos de globalização1 do final do século XX atinge de forma diferente as mulheres, uma vez que, mesmo apartadas de uma formação para o trabalho fora do espaço doméstico, ou para o trabalho remunerado, são instadas a fazerem parte dessa nova sociedade na qual o sucesso financeiro e o amplo acesso ao consumo tornam-se componente importante também para as mulheres.

Para muitas goianas, o caminho para essa inserção se abre com a participação nas feiras (inicialmente, a Feira Hippie, e, depois, várias outras, com destaque para as Feira da Lua e Feira do Sol) que consolidam um mercado de trabalho informal, em um ambiente instável e sem segurança do trabalho. Para estes espaços, as mulheres levam a sua experiência no trabalho doméstico e no atendimento às próprias mulheres em aspectos relativos à moda e à beleza, ou seja, nas atividades em que a presença da mulher é tradicionalmente aceita e considerada ‘natural’.

A dinâmica que irá surgir destas feiras, ou que irá a elas se impor em função de aspectos econômicos não previsíveis no momento da implantação caracterizada pela de comercialização de produtos, irá criar diferenciais significativos para as feiras de Goiânia e para as mulheres que lá desenvolvem as suas atividades. 
Neste caminho, as relações das mulheres que são proprietárias de ‘bancas’ e que trabalham nestes espaços se desenvolveram a partir de relações de pertencimento e representações nas quais a presença da televisão tem uma importância significativa.

A compreensão desta relação e a dinâmica por meio da qual ela se desenvolve tem aspectos complexos, e qualquer exposição que busque uma real compreensão desta complexidade deve considerar os múltiplos aspectos envolvidos, entre eles a própria dinâmica das relações sociais nas quais se inserem as mídias.



A MULHER MODERNA E O ESTEREÓTIPO DO FEMININO

Ao mesmo tempo em que a sociedade contemporânea é marcada pela diminuição da taxa de natalidade e pelo aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho, percebe-se também que sua inserção na sociedade para além do escopo das práticas tradicionalmente consideradas femininas não ocorreu de forma homogênea em todos os grupos e classes sociais e que, necessariamente, não trouxe uma melhor qualidade de vida para elas.

As mulheres de média e baixa renda, particularmente aquelas sem formação acadêmica e/ou profissional, constituem um grupo que enfrenta problemas para a inserção econômica e social, a maioria em decorrência das transformações na dinâmica econômica mundial. Para essas mulheres, essa inclusão muitas vezes foi resultado de pressões fora do seu controle, resultante de um modelo social que exigiu a contribuição, parcial e até total, na renda familiar. A imposição mundial do sistema capitalista nos aspectos econômicos, demandando e ‘justificando’ uma maior capacidade de consumo, exige o aumento da renda familiar de forma a poder responder às novas necessidades de aquisição de bens materiais. Nesse sentido, as características de mudanças citadas por Taschner (2011) não devem e não podem ser elencadas como ‘fatos’ isolados, pois são causa e consequência de um processo maior.

Mudanças nos papéis dos gêneros, maior inserção da mulher no mercado de trabalho entre os motivos, podemos citar: incorporação progressiva das mulheres no mercado de trabalho pós-guerra, um processo iniciado na época da guerra, quando os homens estavam nas frentes de batalha; aprovação da lei do divórcio no Brasil (Lei 6515, de 1977) provoca uma diversificação da estrutura das famílias, ‘recasamentos’, domicílios uniparentais (TASCHNER, 2011, p. 206).

Pela importância da televisão no cotidiano feminino, falar sobre este universo exige pensar a relação com este meio, sobre como a mulher e o feminino são representados na mídia e quais as significações e ressignificações realizadas pelas mulheres em relação a esta emissão, aqui em específico no âmbito da influência da mídia nas relações de trabalho, e a percepção da inserção cidadã, pensando a importância dada às conquistas de direitos sociais e econômicos por parte destas mulheres. No âmbito político-econômico, em uma perspectiva histórica, no Brasil, por diversas vezes, clamou-se a mulher à ação em nome da cidadania, como, por exemplo, por ocasião do Plano Cruzado, quando o então presidente da República José Sarney municiou-se das cidadãs-consumidoras, que se organizaram em grupos de fiscalização, “as fiscais do Sarney”.

Os maridos culpavam as mulheres pelo dinheiro que encurtava na hora das compras [...] As mulheres foram fundamentais na manutenção de todos os planos e eram especiais ajudantes dos jornalistas. [...] Elas eram detalhistas, minuciosas, anotavam tudo, todos os preços. [...] Elas viram que tudo piorou ao longo da primeira metade da década de 1980, boicotaram a carne quando os preços dispararam na entressafra de 1985 e, no Plano Cruzado, acharam que tinham chegado ao paraíso – viraram as fiscais do Sarney. [...] O fenômeno conhecido como ‘fiscais do Sarney’ foi muito mais amplo e profundo do que se imagina. Foi a semente do que se viu nos anos seguintes: um consumidor disposto a defender a economia (LEITÃO, 2011, p. 59).
Os programas televisivos com foco na audiência feminina partem do universo feminino tradicional, adotando como mote as temáticas da culinária, do artesanato, da moda e da beleza para disseminar princípios e valores de autonomia, em especial relacionados ao contexto econômico, com vistas a uma inserção social pelo poder do consumo. Tema específico deste livro, as revistas femininas na televisão conclamam as mulheres a ganharem seu próprio dinheiro e contribuírem com o orçamento familiar, eventualmente incentivando-as a atuar no mercado informal, refletindo sobre como a imagem da mulher independente financeiramente construída pela mídia se reflete na busca das mulheres de renda média ou baixa por atividades ligadas à informalidade.

A título de contextualização, retomamos o cenário da modernidade tardia, caracterizada pela globalização econômica e mundialização cultural, em um ambiente dito de fragmentação e segmentação decorrentes da dispersão dos valores que agora necessariamente não mais passam pelas instituições da família, da Igreja ou do Estado. Como consequência, grupos minoritários, ou até ‘ignorados’ como possuidores de uma identidade, passam a fazer parte das preocupações da sociedade (grupos GLS, terceira idade, étnicos). O compartilhamento de informações, em real time, potencializado pelo avanço tecnológico, muda as percepções em relação ao meio-ambiente, que sofre transformações decorrentes das práticas promovidas pelo próprio desenvolvimento tecnológico, que causa reações adversas, levando a que a mesma indústria que cria, tenha que desenvolver mecanismos de proteção ambiental, aumentando a co-responsabilidade entre as esferas pública, jurídica e privada, demandando o envolvimento dos indivíduos comuns com a política, visando a defesa do ecossistema ambiental.

Muda também a relação do indivíduo com sua saúde e seu bem-estar, que passa a ser vista como produto direto da maneira de viver e não mais como algo dependente de ditames divinos, espirituais, fora do alcance do fazer do cotidiano, ou mesmo fora da guarda do Estado. Da mesma forma, as fronteiras entre vida profissional, vida pessoal e vida social se tornam difusas. A vida pessoal passa a ser administrada com vistas
à imagem, ao status. Amigos e relacionamentos tornam-se networking, prática incentivada pelo desemprego provocado pelas novas formas de gestão (reengenharia, downsizing etc.). 

Deste contexto, fica fora a mulher das classes populares, que sempre teve como prática e meta, ainda que sem o saber, bem administrar a renda familiar para que não faltasse comida aos filhos, ter crédito para os dias mais ‘apertados’, para o que dependia de ter uma boa imagem e credibilidade ‘na praça’. O que, então, muda para esta mulher que sempre teve no trabalho doméstico uma forma de sobrevivência, fosse trabalhando como faxineira, cozinheira, lavadeira?

Agora ela se vê diante da oportunidade de, embora sem formação profissional, inserir-se em um mercado de trabalho que, mesmo que não vá muito além do ambiente doméstico, é diferente de ‘limpar’, ‘lavar’ e ‘cozinhar’. O comércio de produtos, não mais ‘somente’ da sua mão de obra e força física, permite-lhe vislumbrar uma posição de mais respeito. ‘Vender bolinhos’ ou fazer ‘artesanato’ a ser vendido em um espaço público, não mais apenas para pessoas ‘conhecidas’, surge como opções de um trabalho ‘formal’, bem reconhecido pela sociedade. Ela passa a ser alguém que ‘trabalha fora’, que ‘tem seu próprio negócio’, ainda que este ‘negócio’ lhe exija dormir mais tarde, acordar mais cedo, enfrentar chuva e sol, calor e frio, além das demandas fiscais. 

Entretanto, ainda que inseridas no mercado de trabalho, o que lhes permite uma maior atuação na esfera pública, entendida esta atuação como a possibilidade de presença física nos espaços públicos, a ênfase da variação do trabalho destas mulheres recai no aspecto econômico. Muitas mulheres se tornam a principal fonte de renda de suas famílias, uma importância que não se reflete no reconhecimento social. No caso da
pesquisa ‘com’ e ‘sobre’ as mulheres trabalhadoras nas feiras de Goiânia, elas ainda são vistas como exercendo uma função remunerada que é ‘um bico’, uma atividade a ser feita aos finais de semana. Não há uma percepção da dedicação exigida para a apresentação dos produtos nas feiras dos finais de semana, geralmente uma semana inteira de preparo das guloseimas, das peças de artesanato, ou mesmo da compra e organização dos produtos industrializados. Uma falta de reconhecimento que, de certa forma, parte das protagonistas deste comércio, que em geral têm outras atividades remuneradas como ponto de apoio durante a semana, uma atividade no comércio ou nas diversas pequenas e médias indústrias de confecção da região. Por outro lado, este comércio de final de semana é oficialmente valorizado, tendo em vista que a Prefeitura Municipal instituiu uma secretaria só para feiras,2 com ampla divulgação no âmbito do turismo e como polo regional de distribuição.

Na sociedade dita midiatizada, o conhecimento da realidade é cada vez mais resultante de conjunções tecnológicas, contextos político-econômicos e aspectos culturais. “As tecnologias da informação constituíram um regime espaço-temporal em que a imposição da imediatez e a aceleração da informação se transformam em categorias de valoração” (BERGER, 2008). As interações sociais adquirem novas configurações decorrentes das possibilidades tecnológicas e universo simbólico do momento, entretanto o bombardeio de imagens, informações e procedimentos tecnológicos até agora pouco colaborou para ampliar o entendimento e discernimento sobre as condições sociais, políticas e culturais dos indivíduos na sociedade complexa. Ainda processamos as informações e imagens sob o mesmo paradigma dominante, hegemônico, que, quando muito, promove oposições e contrastes, sem realmente contribuir para transformações basilares da percepção da condição humana e seu potencial relacional, político-cultural.

Martin-Barbero (2006, p. 20) é contra o pensamento único que legitima a ideia de que a tecnologia é hoje o “grande mediador” entre as pessoas e o mundo. Para este autor, o que a tecnologia norteia hoje, de modo mais intenso e acelerado, é a transformação da sociedade em mercado, e deste em principal agenciador da mundialização (em seus muitos e contrapostos sentidos). Nenhuma linguagem é totalmente original. Tudo que é falado é resultado de ressignificações. 

No modelo de codificação e decodificação, Hall (2003) supõe que há três tipos possíveis de leituras da mídia e interpretações das mensagens, quais sejam: 1) dominante ou preferencial, o sentido da mensagem sendo decodificada segundo as preferências da sua construção; 2) negociada, quando o sentido da mensagem entra em negociação com as condições particulares dos receptores; e 3) de oposição. Aqui, o receptor entende a proposta dominante da mensagem, mas a interpreta segundo uma estrutura de referência alternativa. Com foco na condição de dependência que as mulheres das classes populares vivem, o acesso às informações é bem restrito, particularmente pelo tempo demandado para realização de jornada dupla de trabalho, exigida para sustento de si e da família. Esta particularidade fica evidente quando analisamos a percepção do aspecto da inserção cidadã e da relação de trabalho pelas mulheres entrevistadas no âmbito da qualificação profissional. A maioria não tem uma qualificação diretamente relacionada à atividade exercida, seja uma educação formal na área de administração ou moda, ainda que de Nível Médio ou Técnico. Aquelas com Curso Superior, em áreas tradicionalmente preenchidas por mulheres, como Pedagogia e Letras, não exercem as profissões de formação. Após tentarem a carreira profissional de formação, sem conseguirem o resultado financeiro esperado e necessário pela condição de apoio à família, retornaram ao trabalho nas feiras, onde já atuavam anteriormente, acompanhando suas mães e/ou familiares. Não é raro encontrarmos mulheres em situação de continuidade do comércio, que ‘herdaram’ a barraca de suas mães, após aposentadoria ou falecimento. 

Entre as mulheres com experiência ‘fora da feira’, a atuação se dá, por exemplo, em empresas de revenda de tecidos, onde faz uso da experiência adquirida na feira. Muitas trabalhavam em indústrias de confecção, na produção ou na área administrativa, contábil, ou em vendas. Nestes casos, algumas tiveram oportunidade de frequentar cursos de capacitação, no Sebrae, por exemplo. 

Um aspecto central desta atividade desenvolvida nas feiras de Goiânia é a característica familiar. Além da continuidade de mãe para filha, muitos maridos participam ajudando no operacional, carga e descarga da mercadoria, e, mesmo que eventualmente façam o atendimento da clientela na barraca, é a mulher/esposa quem toma decisões de preço e registro de encomendas, pois são elas que têm o conhecimento das possibilidades de atendimento dos pedidos, prazos, quantidades, acrescentando-se que em alguns casos as irmãs, cunhadas, tias e sobrinhas também ajudam na comercialização. Nos poucos casos de existência de funcionários assalariados para o trabalho na barraca, o mais comum é contar com a ajuda das ‘domésticas’ empregadas nas casas da ‘dona da barraca’, sem preparo específico para esta atuação ‘eventual’, sem poder de decisão para concessão de descontos, aceitação de encomendas, ou qualquer outra demanda de comunicação além das informações essenciais, preços, tamanhos, modelos, da transação da venda.



SOBRE A MULHER E O TRABALHO

O trabalho situado no âmbito doméstico, que em geral não é remunerado diretamente, tem um status diferenciado e, mesmo quando é inserido no mercado por via da informalidade, carrega estigmas advindos de sua origem. 

Essa questão por si já é significativa, mas ganha uma nova dimensão quando falamos sobre mulheres, e em especial as mulheres que não tiveram formação e condições de se inserir no mercado por meio ‘formal’ e que por diferentes razões foram impelidas a exercer no espaço público as atividades que, de forma direta ou indireta, estão relacionadas às suas atividades domésticas anteriores. Embora inseridas no mercado de trabalho e, a partir daí, atuando no espaço público, o trabalho dessas cidadãs tende a ser desvalorizado, submetido a condições de produção carentes de segurança e outros aspectos, além de estarem mais sujeitas a instabilidade econômica.

As linhas clássicas desta questão ganham novas dimensões quando elas se tornam objeto de atenção na análise do conteúdo das mídias e em particular da televisão. Uma vez que as mulheres constituem uma parte significativa da audiência televisiva, inclusive sendo majoritárias em quase todos os horários,3 é importante entender se as trabalhadoras informais, ou que atuam na informalidade, utilizam o conteúdo das mídias para qualificar as suas atividades e para se autojustificar como trabalhadoras.

Nesse sentido, este trabalho diz respeito a cidadãs que, embora tenham uma relação de informalidade com o mundo do trabalho, exercem atividades produtivas importantes e que, em muitos casos, respondem por  parte significativa da renda familiar. De fato, para muitas mulheres o trabalho informal é o caminho para o Acesso ao consumo e, mais ainda, uma condição básica de cidadania, uma vez que “somente a partir da inserção no sistema de produção que o trabalhador, como membro de uma comunidade de produtores, adquire o poder social, que lhe franqueia o acesso ao poder político” (SILVA, 2008, p. 81-2), ou seja, na sociedade marcada pela produção industrial em larga escala, o direito ao consumo forma a base para o alcance de outros direitos de cidadania e, em alguns casos, até mesmo para os direitos políticos.

O trabalho é a alavanca para outro elemento importante, o reconhecimento social. Neste contexto, o reconhecimento é um dos pilares da relação entre cidadania e trabalho. Consequentemente, as maneiras como as mulheres se percebem (e são percebidas) na qualidade de trabalhadoras informais interferem no status de cidadania de cada uma delas.

Dessa forma, podemos inferir que a mulher inserida no trabalho informal encontra-se em uma situação dicotômica de ter orgulho de ter seu próprio dinheiro e/ou vergonha de exercer um tipo específico de trabalho pouco valorizado pela sociedade. Nestes aspectos, a representação veiculada pela mídia sobre essas trabalhadoras, o apoio direto ou indireto que encontram no conteúdo televisivo, remetem a situações que ultrapassam problemas de autoestima e realização pessoal. 

Uma vez que as mídias, e em particular a televisão, têm uma ação importante na formação das noções de nacionalidade, cidadania e das relações sociais, é igualmente importante perceber como a relação mulher e trabalho é percebida por esse veículo. Nesse sentido, as revistas femininas na televisão constituem um fórum privilegiado, uma vez que são programas especificamente direcionados ao público feminino, exibindo uma versão glorificada e idealizada da própria realidade vivenciada pelas mulheres, mas que também atuam como espaço de crítica social, em um processo de acompanhamento das mudanças sociais, profissionais e culturais que ocorrem na sociedade moderna e que igualmente envolvem a relação da mulher com o trabalho e com o consumo.

Segundo dados do IBGE4 no que se refere às formas de inserção feminina no mercado de trabalho, em janeiro de 2008 das mulheres ocupadas, 37,8% tinham trabalho com carteira assinada no setor privado, ao passo que entre os homens esse percentual era de 48,6%. Em janeiro de 2003, as proporções de homens e de mulheres com carteira assinada eram, respectivamente de 35,5% e de 44,3%. Entre os trabalhadores domésticos, a participação foi de 16,5% e de 0,7%, respectivamente, para mulheres e homens. Nas demais formas de inserção, as mulheres ocupadas estavam distribuídas da seguinte forma: empregadas sem carteira assinada, 12,1%; conta própria, 16,9% e empregadoras, 3,0%. Em termos regionais, a maior concentração de mulheres ocupadas com carteira assinada foi na região metropolitana de Porto Alegre (42,4%); e na região metropolitana de Salvador, o maior percentual das mulheres ocupadas em trabalhos domésticos (18,9%), em janeiro de 2008. Esses dados revelam a fragilidade da mulher e sua representação no mercado
de trabalho informal.

Em média, o rendimento das mulheres equivale a 71,3% do recebido pelos homens. O rendimento médio habitual das mulheres em janeiro de 2008 foi de R$956,80, ao passo que o dos homens foi de R$1.342,70 para o conjunto das seis regiões metropolitanas investigadas pela Pesquisa Mensal de Emprego. Na análise de cada região metropolitana, esse percentual foi de 75,9% em Recife, 74,2% em Salvador, 65,2% em Belo Horizonte, 75,6% no Rio de Janeiro, 70,4% em São Paulo e 69,3% em Porto Alegre.

Outro problema social importante e que tem proporções diferentes para homens e mulheres é a alfabetização. Dados das Organizações das Nações Unidas (ONU) comentados por Paulilo (1999) revelam o analfabetismo e as desigualdades a que são sujeitadas parte importante da população feminina mundial.

Esses dados indicam que ainda que a sociedade tenha vivenciado várias mudanças culturais, o aumento da participação da mulher no mercado de trabalho se deve, sobretudo, à necessidade de sobrevivência. Dessa maneira a inserção da mulher no mercado de trabalho informal revela também a situação econômica brasileira contemporânea, em um mercado que, no encalço da globalização, sofreu mudanças nas estruturas produtivas, nas formas de organização e gestão e nas relações de trabalho.

É possível supor, portanto, que o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho informal nos últimos anos é reflexo do contexto geral deste mercado no mundo, com as flexibilização das relações de trabalho como alternativa para a garantia dos lucros, pois pagando menos impostos os capitalistas podem manter a acumulação e garantir a continuidade do sistema econômico vigente.

O novo modelo de acumulação prevê o aumento da competitividade entre as empresas, o aumento do valor dos produtos, vide valorização e venda de marcas e objetos simbólicos, e a diminuição dos custos de trabalho, que por vezes incluem férias, direito à licença maternidade, em suma, direitos trabalhistas duramente conquistados pelas classes trabalhadoras em âmbito mundial, que se perdem dia após dia. O novo capitalismo “se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços” (HARVEY, 2005, p. 169).

Estrategicamente, a incidência de informalidade é maior entre os trabalhadores que tradicionalmente obtém menores rendimentos, e que estão mais desprotegidos perante o mercado de trabalho, pois não possuem nem capital nem formação profissional. Não é surpreendente, portanto, que as mulheres predominem entre os que procuram trabalho. Mesmo mulheres com formação superior recebem 60% do rendimento dos homens, indicando que, mesmo com grau de escolaridade mais elevado, as discrepâncias salariais entre homens e mulheres permanecem.

De fato, uma pesquisa do IBGE realizada em 2009 indica que 70% das mulheres entre 16 e 24 anos trabalham na informalidade, possivelmente por causa daà dificuldade de conseguir o primeiro emprego e da falta de capacitação profissional. Outro dado significativo da mesma pesquisa é que 82,2% do mercado informal brasileiro é composto por mulheres acima de sessenta anos.

Sobre este ponto, convém esclarecer que, embora numericamente constituam a maioria da população brasileira, as mulheres podem ser consideradas, em diferentes aspectos, uma minoria, uma vez que o  conceito de minorias empregado neste trabalho não se restringe à dimensão quantitativa de determinados grupos sociais, mas de grupos sociais percebidos como ‘diferentes’ e que são objetos, em algum momento histórico, de uma vulnerabilidade jurídico-política, econômica, social ou cultural e de uma marginalização pelos sistemas hegemônicos de representação e de produção de sentido (SODRÉ, 2005). Essa definição, portanto, se aplica às mulheres que têm dificuldades no acesso ao mercado de trabalho e ao próprio exercício da cidadania.

A vulnerabilidade das mulheres com relação ao mercado de trabalho explica também porque um grande número delas busca a alternativa de se inserirem no mercado de trabalho informal, em muitos casos exercendo atividades remuneradas que têm proximidade com as suas funções anteriores de ‘donas de casa’, ou atuando em áreas ligadas à moda ou beleza, ou em atividades cujo conhecimento prático sentem dominar, ou seja, atuando na confecção de alimentos, roupas e acessórios diversos de beleza, que são comercializadas em espaços alternativos ou informais.

Nesse sentido, observa-se que a inserção da mulher no mercado informal permite, portanto, que ela tenha acesso a um tipo de renda e, com isso, adquira independência financeira, autonomia e, consequentemente, condições de consumo. Mesmo não sendo uma forma de trabalho institucionalizada e regulamentada, o exercício da atividade produtiva por essas mulheres que atuam no mercado informal permite o acesso aos direitos de trabalho e consumo, o que indiretamente perfez a noção de cidadania contemporânea (CANCLINI, 2006).

No entanto, ao se inserirem em trabalhos informais, este grupo de mulheres fica fragilizado em relação à sua própria inserção econômica, pois, como vamos analisar, ficam sujeitas a questões fora do seu controle, entre elas os critérios estéticos e a própria dinâmica de velocidade da produção imposta pela mídia.



MULHER, TELEVISÃO E TRABALHO

As mulheres representam hoje mais da metade da população nacional. De fato, como elas costumam comentar nas conversas informais, não apenas existem mais mulheres do que homens5, como o aumento da proporção de mulheres em relação aos homens é uma tendência demográfica no Brasil. Ou, em outras palavras, a cada nova pesquisa os resultados mostram que a população feminina tem aumentado em relação à masculina6. Segundo dados do Ibope7, as mulheres são maioria também em frente à telinha, correspondendo à 53% do público que acompanha a programação exibida diariamente pelas emissoras no país. Para as agências de publicidade, e, portanto, para os programadores da televisão brasileira, o sexo feminino representa um público importante tanto no que diz respeito às possibilidades relacionadas ao consumo, mas também em muitos casos decidem qual o canal ou programas que os filhos e outras pessoas da família vão sintonizar.

Como nos lembra Thompson (2002, p. 43), “a televisão ocupa lugar privilegiado na vida cotidiana, é uma atividade de rotina, parte integrante das atividades constitutivas da vida diária”. No entanto, no que diz respeito às mulheres, essa relação deve ser vista como ainda mais forte. De fato, de muitas maneiras, elas constituem um público diferenciado (privilegiado?) na visão dos programadores da televisão. Particularmente no caso das mulheres que estão envolvidas com o trabalho doméstico, que em essência é repetitivo e solitário, o rádio e a televisão e as pessoas que neles trabalham tendem a serem vistos como companhias nas horas de solidão. Nesse sentido, aliás, os programas femininos são exemplo extremamente rico: produzidos para ‘falar a língua das mulheres’, para tratar de variedades e temas de interesses da mulher, esses programas estabelecem com muita propriedade o que Thompson (2002) chama de “intimidade não recíproca à distância” na quase-interação mediada. As telespectadoras constroem uma relação de proximidade imaginária com as apresentadoras e personagens desses programas. Estabelecem um vínculo de confiança e amizade de modo que tais produtos midiáticos chegam a fazer parte, verdadeiramente, de suas rotinas como referências para os mais diversos assuntos.

Ainda que eventualmente (mas nem sempre) em menor escala, essa relação se estende à programação distribuída em diferentes horários do dia, de fato, as mulheres receptoras de televisão muitas vezes criam laços fortes com as mulheres – personalidades ou personagens – retratadas nesta mídia, formando vínculos que vão além de uma admiração simbólica, uma vez que se consolidam em processos de imitação de comportamentos e ações.


Dessa forma, a televisão se insere em um espaço de trocas simbólicas com o seu público – no caso a audiência feminina – fornecendo exemplos de mulheres que despertam a atenção e a admiração deste público, e com isso fomentando mudanças no comportamento deste universo, mas também atuando em um processo ativo de acompanhamento destas mudanças, ou seja, de forma a se manter sempre na sua melhor forma para falar da e com a mulher que assiste a sua programação. A visão panorâmica da televisão hoje mostra claramente que as mulheres representadas pelas mídias não se limitam às famosas “amélias”, ou à misturas de “barbies-patricinhas” que pouco se preocupam com as questões ligadas ao dinheiro. Uma breve revisão histórica da televisão brasileira aponta que sua programação, e, em particular a oferta televisiva do chamado horário nobre,8 reservou um espaço importante para atender a este público, e mais do que isso, buscou conquistá-lo apresentando modelos de mulheres fortes tanto no material ficcional quanto nas informações telejornalísticas e nos programas voltados para o entretenimento.

No entanto, ainda que os exemplos de mulheres fortes retratados pela televisão não sejam aleatórios, pois representam os sonhos e ambições da audiência, essas representações “agem” sobre a audiência, criando expectativas e comportamentos que, em muitos casos, se consolidam em ações, que por sua vez são novamente captadas e retratadas pela mídia de forma a exemplificar/fomentar novas mudanças.

Fadul (1988, p. 16-21) diz que “falar de telenovela brasileira significa antes de tudo assinalar uma grande quantidade de obras, desde a comédia, passando pela crítica social, pelo enfoque da tragédia urbana até as adaptações literárias”, indo além de categorização de gêneros ou sub-gêneros. Em uma abordagem diferente, ela trata das temáticas desenvolvidas nas telenovelas brasileiras, e sua ligação com a sociedade. Entre estas temáticas encontra-se a mudança dos papéis da mulher na sociedade e a função da telenovela neste contexto, o que se constitui preocupação de vários autores e pesquisadores. Nina (1977) foi uma das primeiras produções a tratar da questão da liberdade da mulher. Antes dela O Casarão (1976) trazia personagens femininos com mensagens feministas. A seguir veio Os Gigantes (1979-80), com Paloma, “uma mulher de horizontes amplos, absolutamente livre e solta no mundo”. Em Corpo a Corpo (1984-85) o tema é o êxito profissional de uma mulher e o fracasso de seu casamento.

Nas obras mais recentes, em um movimento de acompanhamento das mudanças nas práticas cotidianas, a mulher retratada pela televisão, particularmente nos conteúdos ficcionais e nos programas femininos, está mais fortalecida tanto nos aspectos ligados ao consumo quanto nas questões relacionadas ao social e ao político, e consequentemente à cidadania.

Não é surpreendente que a mulher retratada pela televisão – particularmente nos conteúdos ficcionais e nos programas femininos - esteja mais fortalecida tanto nos aspectos ligados ao consumo quanto nas questões ligadas às relações sociais e políticas – e conseqüentemente à cidadania.

A mulher moderna representada pela televisão não apenas trabalha, como também contribui para o rendimento da família. A televisão mostra sem estranhamentos as mulheres que valorizam a autonomia, a independência e a busca profissional e que preferem morar sozinhas. Tanto os conteúdos ficcionais (particularmente as novelas) quanto os programas de entrevistas, espaços jornalísticos e/ou entretenimento estão repletos de mulheres independentes, solteiras ou separadas do marido/companheiros, que assumem sozinhas as responsabilidades com os filhos e com a casa e ainda assim têm um desempenho profissional expressivo.

É o caso, para citar um exemplo, da personagem Griselda (Lilia Cabral), da novela Fina Estampa (Rede Globo de Televisão/2011-2012), conhecida como Pereirão, que trabalhava como ‘marido de aluguel’, ou seja, alguém que faz pequenos consertos e instalações no espaço doméstico e, mesmo após ganhar na loteria, abre uma empresa que presta os mesmos serviços.

Embora com algumas variáveis, a personagem segue uma trilha deixada por várias personagens anteriores,
como a Haidê (Rosi Campos) da novela Insensato Coração (Rede Globo de Televisão, 2011), que trabalhava como faxineira: ambas são mulheres trabalhadoras, que se apoiam em rígidos princípios e valores morais e que encontram no trabalho um caminho para manter e educar os filhos dentro dos valores que prezam. Mas estes são apenas exemplos recentes, que podem ser completados por personagens mais antigos, como Maria de Fátima (Glória Pires) na novela Vale Tudo (Rede Globo de Televisão, 1988-1989). Dona Lola (Irene Ravache) em Éramos Seis (Rede Tupi, 1977) viveu uma mulher forte, que luta para manter a harmonia da família, até ser abandonada pelos filhos em um asilo. Kiki Blanche (Eva Todor) em Locomotivas (Rede Globo de Televisão, 1977) sustenta a família com seu salão de beleza. Dona Xepa (Iara Cortes) (Rede Globo de Televisão, 1977) uma feirante que luta para sustentar e formar os filhos para que tenham uma vida melhor que a dela. Dancin’  Days (Rede Globo de Televisão, 1978-1979) trouxe Júlia (Sônia Braga), uma ex-presidiária que, desprezada pela irmã rica, sai em busca de uma nova vida e volta como uma mulher de sucesso. Em Rainha da Sucata (Rede Globo de Televisão, 1990), Maria do Carmo (Regina Duarte) faz fortuna administrando o ferro-velho do pai, vencendo as mais diversas barreiras e os mais diversos preconceitos.

Além dos valores morais, no entanto, essas personagens femininas têm outro traço em comum, ou seja, exercem tarefas ou funções que profissionalmente estão ligadas a atividades que remetem a algum tipo de elo com atividades tradicionalmente femininas (trabalho doméstico ou atividades relacionadas a moda e a beleza). Em muitos casos, é por meio destas atividades, inclusive, que as personagens conseguem uma desejada ascensão social.

A questão remete à ideia de que as mulheres são mais eficientes nesta área, ou, em uma visão mais radical, apenas são eficientes neste segmento. O objetivo da pesquisa não envolve diretamente a discussão do aspecto, uma vez que se centra particularmente na percepção que as mulheres empreendedoras têm do conteúdo da televisão. Ainda assim, uma vez que o assunto da divisão sexual do trabalho se apresenta, é necessário desenvolver uma reflexão sobre este tema.

A divisão sexual do trabalho é um conceito necessário para a compreensão das práticas sociais permeadas pelas construções dos gêneros, uma vez que permite o entendimento das relações de gênero9 a partir da passagem do abstrato ao concreto, possibilitando pensar simultaneamente o material e o simbólico, restituindo aos atores sociais o sentido de suas práticas (KERGOAT, 1996).

Nesse sentido, a divisão sexual do trabalho deve ser compreendida a partir dos elementos conjunturais e históricos que determinam essas práticas, mas entendendo que as diferenças ocorrem tanto na conservação das tradições, quanto na criação de novas modalidades da divisão sexual das tarefas. Na maior parte das vezes, no entanto, há uma evidente subordinação de gênero, ou seja, um gênero predomina sobre o outro. Nas sociedades latino-americanas, a tendência é a predominância do gênero masculino, o que pode ser observado pela assimetria nas relações de trabalho, na divisão de tarefas e nos critérios que definem sua qualificação, nos salários e na disciplina do trabalho. Analisado a partir dessas discrepâncias, é possível entender a divisão sexual do trabalho como algo maior do que a simples distribuição de tarefas por ramos ou setores de atividade: ela é também o princípio organizador da desigualdade no trabalho (LOBO, 1991).

Compreender os fundamentos da divisão sexual do trabalho permite entender também porque, apesar da diminuição da taxa de natalidade e do aumento da participação das mulheres do mercado de trabalho, a relação da mulher com as atividades produtivas remuneradas não se dá de forma homogênea em todos os grupos e classes sociais, muitas vezes marcada pela busca de atividades que não apenas visam atender outras mulheres, mas também mantém um vínculo com as atividades domésticas ou atividades tradicionalmente femininas.

Dessa forma, ainda que o reflexo das representações femininas na mídia, e em particular na televisão, tenham ligações com a realidade, não é o retrato completo desse universo. De fato, o aumento numérico do acesso das mulheres ao trabalho remunerado não significa necessariamente que a vida das mulheres esteja fácil no que diz respeito ao acesso à educação, aos direitos sociais e ao trabalho. Apesar de ter seus direitos
garantidos pela Constituição, a mulher brasileira sabe que ainda há muito a conquistar.

Entre os desafios está a relação da mulher com o trabalho remunerado e fora de casa. Se por um lado temos mudanças que alteram a relação da mulher com o trabalho remunerado, como a queda na taxa de fecundidade10, que em 2006 atingiu o índice de dois filhos por mulher, por outro, temos também a mudança nos papeis femininos em relação ao sustento dos filhos. Para setores importantes das camadas médias da população nacional, a participação da mulher na renda familiar não apenas cresceu como se tornou indispensável. Além disso, entre 1996 e 2006 o percentual de mulheres brasileiras responsáveis pelos domicílios quase dobrou. Da mesma forma, a ‘chefia’ da casa não está mais limitada às mulheres abandonadas ou solteiras que, por falta de opção, assumem esse compromisso. A Síntese de Indicadores Sociais – 2007 nos mostra que o aumento da ‘chefia’ feminina ocorreu sobretudo nas famílias compostas por casal com ou sem filhos.

Outro aspecto a ser considerado é que, em muitos casos, a inserção feminina no mundo do trabalho fora de casa nem sempre trouxe uma melhor qualidade de vida ou mesmo representou uma escolha real. Para muitas mulheres, essa inclusão muitas vezes foi resultado de pressões fora do seu controle, resultante de um modelo social no qual se tornou fundamental que contribuíssem com a renda familiar, quando não com a renda principal para o sustento da família. Para algumas destas mulheres, o trabalho remunerado representou ou ainda representa uma imposição para a qual não estavam preparadas e com a qual não sabiam lidar, pois, em proporções relevantes, alguns casos não possuem formação acadêmica e/ou não tem uma formação profissionalizante voltada para o mercado de trabalho. Um bom exemplo desta imposição do trabalho feminino é a personagem Penha, uma empregada doméstica que tem que sustentar um filho, um irmão e o marido, na novela Cheias de Charme (Rede Globo de Televisão, 2012).



REPRESENTAÇÕES - IDENTIDADES FEMININAS


O cotidiano é o lugar onde se constitui o significado das palavras, a partir da circulação das formas simbólicas, permitida pela consciência possível, resultante de uma ideologia, que é impregnada, por sua vez, de estereótipos e preconceitos. O estereótipo como facilitação de aprendizagem e comunicação caracteriza um lugar social, pois é de difícil erradicação, faz parte de uma cultura e é transmitido através das gerações.

A diferenciação de gêneros – homem, mulher – passa por estes aspectos. O gênero feminino independe do sexo. É mais produto da cultura, entendida como “um padrão de expectativas acerca do que são os comportamentos apropriados e as crenças para os membros da sociedade” (ANDERSEN apud MOTA-RIBEIRO, 2005, p. 16). A cultura de uma sociedade é a maneira como seus indivíduos se expressam, agem e vivem. De fato, a categoria de gênero é algo a ser aprendido. “É a partir do processo de socialização que os indivíduos distinguem o masculino e o feminino” (MOTA-RIBEIRO, 2005, p. 17). Um processo ativado pelos agentes de socialização – família, pares, professores, mídia, grupos religiosos. Mais do que uma identidade, o comportamento social tem como base os estereótipos, como elementos de pressão, junto com as expectativas sociais e culturais às quais o indivíduo, ainda criança, é exposto. Uma determinada cultura só é significativa para seus participantes na medida em que as ações e expressões manifestadas sejam significativas para os próprios indivíduos que as estão produzindo, percebendo e interpretando, no curso de suas vidas. A cultura que dá um espaço de atuação para as mulheres, nas feiras, refletindo um contexto hegemônico na medida em que não avança na divisão do trabalho é a mesma que define a identidade feminina a partir de representações estabelecidas pelo desenvolvimento das civilizações e pelo patriarcado estabelecido pela agricultura, que beneficiou o domínio masculino tendo em vista a demanda da mulher na geração e no cuidado com os filhos, enfatizado pelas tradições religiosas, mono ou politeístas que relegaram à mulher, deusas ou virgens, a responsabilidade da fecundidade e do sagrado (STEARNS, 2010).

Ainda que Martin-Barbero (2001, p. 59) veja a cultura de massa como “a primeira a possibilitar a comunicação entre os diferentes estratos da sociedade”, esta “comunicação” não significa ‘igualitarismo’ ou mesmas oportunidades para todos. Na medida em que “uma cultura constitui um corpo complexo de normas, símbolos, mitos e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade, estruturam os instintos, orientam as emoções”, possíveis graças aos arquétipos e estereótipos, que possibilitam “trocas mentais de projeção e de identificação” (MORIN, 1967, p. 15), a cultura encarna também os valores contemporâneos de uma sociedade.

Nesse sentido, é importante diferenciarmos estereótipos de representações sociais. Enquanto os primeiros referem-se ao grupo do que é ser mulher e são carregados de aspectos ideológicos, herdados da trajetória de desenvolvimento das civilizações, as representações dizem respeito à feminilidade, um conjunto de valores partilhados relativos ao feminino,

[...] que servem não apenas como simplificações úteis para lidar com a complexidade e diversidade do universo feminino, mas que também podem funcionar como formas de criação de uma espécie de feminilidade hegemônica, de uma imagem mantida do feminino, que reforça uma ideologia dominante (MOTA-RIBEIRO, 2005, p. 23).

A publicidade produz efeitos de sentido que refletem valores de uma sociedade patriarcal que, bem ou mal, por força das contingências de um ambiente socioeconômico cada vez mais complexo, atravessado por uma diversidade de procedimentos técnico-administrativos, teve de mudar. Mudanças que começaram com a inserção da mulher no mercado de trabalho para atender às demandas enquanto os homens estavam nos campos de batalha, lutando pela manutenção das democracias. Mudanças que deviam atender às necessidades de um Estado que tem de crescer e, para isso, teve que inserir a mulher no processo democrático. Mas não foram mudanças drásticas, pois, para ser reconhecido e aceito, o discurso deve ter o valor cultural do receptor, e percebemos que este continua arraigado aos valores ocidentais judaico-cristãos que disponibilizam às mulheres modelos de representação aceitos passivamente como naturais e não como histórica e socialmente construídos, mais especificamente, os paradigmas ‘encarnados’ por duas mulheres centrais na tradição católica, Eva e Maria, a mulher-objeto e a mulher-mãe (MOTA-RIBEIRO, 2005, p. 26).

Nesta discussão, retomamos elementos de resistência ou aceitação, ou, ainda, de negociação e mediação, na linha de Fiske (1999, p. 14), para quem “o discurso é um ato social que pode promover ou se opor à ideologia dominante”. Ao falar de identidade como resultante de um “processo de construção social ocorrendo sempre em um contexto marcado por relações de poder”, Castells (2008, p. 24, 25) discute identidade “de resistência” talvez como “o tipo mais importante de construção de identidade em nossa sociedade”, que se funda no coletivo, nos grupos sociais, em resposta a uma descaracterização dos processos identitários tradicionais. A mulher que atua em várias frentes de trabalho, uma mais formal, durante a semana, e outra menos institucionalizada, aos finais de semana, está de certa forma no limite de uma identidade de resistência e conformidade. Entre o que se espera dela como mulher, na proximidade com artigos culturalmente de interesse das mulheres, confecções, artesanato, culinária, e da necessidade de sobrevivência e subsistência econômica da família.

Na sociedade midiatizada, as dinâmicas de negociação e oposição se tornam mais possíveis e mais explícitas pela mudança das situações dos receptores oriunda das possibilidades tecnológicas, a saber: facilidade de intercomunicação, rapidez de recebimento e envio de fatos, opiniões e percepções, multiplicidade de formatos, não só voz e texto, mas também imagem, estão acessíveis ao indivíduo comum, que as usa e manipula ao bel prazer. Entretanto, até que ponto isto está acessível a esta mulher que enfrenta jornadas duplas, e até triplas?

Assim como o trabalho, importante elemento de reconhecimento do sujeito na sociedade, ainda que pela sua capacidade de produção, mão de obra operacional, também nos fazemos sujeitos-agentes pelo consumo, determinando posições sociais e identidades pessoais (no auge do período da sociedade industrial, os indivíduos se identificavam e eram identificados a partir dos vínculos empregatícios – fulano que trabalha em x empresa, o vizinho que é encarregado de seção da empresa tal). Neste domínio, está incluída a inserção cidadã como consequência de uma prática social que permite que os indivíduos sintam-se parte e construam vínculos com o momento e local em que vivem. O consumo como um direito do cidadão deve ser compreendido do ponto de vista de um elemento de modernização, de formação/educação, de sociabilidade compartilhada, sendo relevante nos diversos aspectos da vida social.



HOJE É DIA DE FEIRA


As feiras livres são a forma mais antiga de comércio existente. Seu início data da Idade Média, através das inúmeras rotas comerciais, responsáveis pela formação de feiras livres e posteriormente pelo surgimento das cidades. Na percepção de Mascarenhas e Dolzani (2008, p. 74), a feira livre se configura como espaço de territorialidade popular.

Como resultado de longa evolução dos mercados a céu aberto, de remota origem ibérica, redefinimos no contexto urbanístico da racionalidade higienista da Belle Èpoque, a feira livre representa uma experiência peculiar de sociabilidade e de uso da rua, que há décadas sofre acusação de obsolescência, pela difusão limitada da automobilidade e das modernas formas de varejo.
As feiras são, portanto, espaços definidos por sua excelência como ambientes de sociabilidade, ou seja, de relações estabelecidas na esfera social. Mas as feiras também são conjuntos vivos de pessoas e interações, de processos de trocas de mercadorias e significados: “as formas que resultam desses processos, ganham vida própria, libertas dos conteúdos e existindo por si mesmas, constituindo a sociabilidade” (SIMMEL, 1983, p. 50).

Enquanto espaços destinados à sociabilização, as feiras são também ambientes/espaços populares. Sobre este ponto, é importante destacar que a noção de ‘popular’ é algo passível de forte embasamento teórico, um conceito sobre o qual diversos autores se dedicam a pesquisar. No entanto, para entender melhor a própria concepção do termo popular, é necessário discutir antes a concepção de cultura.

Chauí (1986) define cultura como tudo aquilo que esteja ligado ao cuidado do homem. Inicialmente, o termo cultura foi empregado para designar a relação de cuidado que existia com as crianças, idosos, plantações etc. Dessa forma, entende-se cultura como algo material e imaterial e que se utiliza da memória como forma de transmissão.

É a cultura popular, transmitida pela oralidade, que define o próprio conceito de popular. Neste sentido, a tradição das feiras livres significa um exemplo dessa cultura popular que sobreviveu. Apesar das muitas inovações que passaram a existir no mercado e na própria noção de consumo, que se alteraram ao longo dos anos, a feira é ainda um exemplo de sobrevivência, na qual subsiste uma dinâmica econômica no qual famílias possuem um comércio – uma barraca ou espaço para comercialização – nas feiras como sua atividade econômica principal, muitas vezes envolvendo o conjunto familiar11.

No Brasil, como em muitos países da América Latina, as feiras são espaços para a comercialização de diferentes produtos, incluindo-se aí a produção agrícola vinculada ou não a uma produção familiar – pequenos agricultores, sitiantes e donos de chácara –, mas também produtos artesanais diversos, utilidades domésticas variadas, produtos de beleza e assessórios de todas as espécies, além de roupas e confecções.

Neste contexto, na década de 1960 começam a surgir no Brasil as chamadas Feiras Hippies, um reduto de jovens que, inseridos em formas alternativas de trabalho, buscavam espaços para comercializar seus produtos. Particularmente em Goiânia, a história da Feira Hippie começa na mesma década, quando alguns expositores mostram peças no Parque Mutirama, migrando posteriormente para a Praça Universitária, depois para a Praça Cívica, e finalmente para o local que se encontra atualmente, a Praça do Trabalhador.

Aos poucos, a feira foi perdendo o seu caráter inicial e se transformando em um espaço onde predominava a comercialização de roupas e produtos semi-industrializados12. Embora ainda subsistam diversos expositores que trabalham com peças de crochê, porcelana, cerâmica, tachos feitos de cobre e peças de tear, além de outros tipos de artesanato e alguns artistas plásticos, os expositores se dividem predominantemente na comercialização de peças de vestuário, calçados e assessórios, além de inúmeros espaços dedicados a alimentação.

A Feira Hippie é, portanto, marcada pela opção de atender a um público que procura produtos de baixo custo e, estrategicamente situada ao lado da Estação Rodoviária, o local atrai compradores e revendedores de várias partes do país, mas atende notadamente as regiões Norte e Nordeste. Essa movimentação criou uma dinâmica especial ao redor da feira, que hoje é ladeada por várias lojas populares, hotéis de baixo custo e todo um conjunto de serviços voltados para o atendimento dos compradores de outras regiões.


Como uma forma de reação ao apelo mais popular da Feira Hippie, a Feira da Lua – situada no setor mais nobre da cidade de Goiânia – foi criada em 1993, inicialmente com a exposição de 250 feirantes, mas com o objetivo de ser um espaço para exposição de produtos um pouco mais sofisticados, especialmente oriundos do setor de confecções de Goiás.

Aos poucos, o número de expositores cresceu, atingindo hoje cerca de 1.240 bancas expositoras e ocupando todo o espaço da Praça Tamandaré, no Setor Oeste, e impossibilitando um novo crescimento do número de barracas. A ampliação do número de expositores logicamente também mudou o padrão da feira, que aos poucos foi abrindo espaço para produtos de menor custo, mas ainda assim a Secretaria de Desenvolvimento Econômico Municipal (Sedem) apresenta a Feira da Lua como a feira mais ‘elitizada’ da cidade.

O público estimado é aproximadamente de dez mil pessoas por sábado, lotando as bancas de alimentação, artesanato, vestuário feminino, vestuário masculino, vestuário infantil, calçados e acessórios. Segundo indicaram os dados desta pesquisa, a maioria dos frequentadores – cerca de 70% – é do sexo feminino, e a
uma grande maioria (97%) já visitou este espaço mais de uma vez. De fato, embora não atraia um número tão grande de lojistas e sacoleiros de outras cidades ou Estados quanto a Feira Hippie, muitos frequentadores da Feira da Lua também buscam produtos para revender, eventualmente alternando as compras entre as duas feiras, fábricas e oficinas especializadas no atendimento aos setores de confecção.

Notadamente, como vamos mostrar mais adiante, a Feira da Lua é também uma grande vitrine para muitos comerciantes.



AS FEIRAS EM GOIÂNIA E A PRESENÇA FEMININA


Os aspectos culturais, sociais e econômicos criaram condições objetivas para que em Goiânia alguns espaços públicos se consolidassem em feiras, em espaços nos quais os participantes, feirantes/expositores expõem produtos artesanais ou semiartesanais, predominando a confecção de roupas femininas, produtos para alimentação, artesanatos diversos, bijuterias, bolsas e muitos outros. Tais espaços podem ser mais bem entendidos se tomarmos como ponto de partida a nova correlação de forças políticas que se estabelece em Goiás a partir de 1999.

Embora o surgimento das confecções têxteis em Goiânia remonte à implantação da Planalto Confecções, criada em 1964, as mudanças decorrentes dos processos ativos de mudanças comerciais mundiais afetaram fortemente o setor nos últimos anos do século passado. Neste período, os elementos de modernização da estrutura socioprodutiva inseridos no fenômeno mundial, a reestruturação das estruturas produtivas ordinariamente chamada de globalização, passa a ter reflexos mais fortes no Estado, com elementos visíveis nos processos de produção, serviços e trocas comerciais.

Uma parte significativa desta mudança ocorre com o desenvolvimento do setor da indústria em Goiás, com a implantação de unidades de grande porte existentes no setor secundário, como o beneficiamento de matéria-prima para a indústria pesada e a fabricação de automóveis.

Verdadeiramente, o crescimento industrial de Goiás teve forte expressão na indústria têxtil, um ramo em grande expansão econômica que, segundo estatísticas da Secretaria de Planejamento do Estado de Goiás (Seplan), gera a cada ano uma quantidade maior de divisas além de empregos diretos e indiretos.

A partir dessa ação pioneira, outras confecções goianienses foram instaladas nos setores Campinas, Fama e
Marista, que são atualmente os principais polos de distribuição e comercialização dos produtos fabricados pelas empresas. Na década de 1980, mesmo com a recessão que o país enfrentava, o setor se consolidou na cidade, ampliando-se para a Avenida 85 e adjacências do setor Marista e, sobretudo, para a Avenida Bernardo Sayão, no setor Fama, que hoje concentra uma grande variedade de lojas voltadas para esse tipo de comércio.

Os polos de confecções de roupas no Estado de Goiás se concentram em particualr nas cidades de Goiânia
e Jaraguá, na região centro-norte do Estado, e subdividem-se em três segmentos, quais sejam: a confecção de roupas, a confecção de meias e confecção de acessórios.

O crescimento do setor foi rápido e logo atingiu outros municípios do Estado, principalmente Aparecida de Goiânia e Trindade (CASTRO; BRITO, 2005). Esse processo de crescimento se relaciona com a baixa complexidade tecnológica desta indústria e a heterogeneidade da produção (CASTRO, 2004; GORINI,  2000; BASTOS, 1993), mas também foi alavancada pela localização estratégica da cidade de Goiânia, próxima à Brasília e particularmente à rodovia Belém-Brasília, o que possibilita o afluxo de compradores de grande parte da região Norte interessados principalmente nas produções destinadas majoritariamente ao mercado popular.

Neste cenário, as feiras Hippie, da Lua e do Sol emergem como espaço privilegiado para a comercialização dos produtos têxteis (CASTRO, 2004), eventualmente fomentando um processo de retroalimentação entre as feiras e as confecções de caráter popular existentes no Estado. Uma vez que a produção é voltada predominantemente para consumidores de baixa renda (e, é claro, para revendedores destes produtos), a comercialização dos produtos têxteis na região está associada às feiras semanais ou pontos centrais de venda na cidade, que normalmente atraem grupos de compradores, entre eles caravanas e ônibus de ‘sacoleiros’ (CASTRO; BRITO, 2005).

Para atender tanto a consumidores diretos, como a revendedores, o município de Goiânia conta hoje com 138 feiras, sendo 126 feiras livres, destinadas sobretudo à venda de produtos alimentícios, tais como frutas e verduras, tanto noturnas, como diurnas, distribuídas em todos os dias da semana, em quase todos os bairros da capital. As 12 feiras restantes são destinadas ao comércio de produtos relacionados ao vestuário, embora o setor alimentício também exista, porém destinado à venda de produtos prontos para o consumo.

A mais antiga das feiras goianienses é a Feira Hippie, com mais de seis mil expositores, montada na Praça do Trabalhador, no Centro da cidade, aos domingos das 5h às 14h. Estima-se que passem por ela mais de trinta e cinco mil pessoas, vindas de todos os estados brasileiros em busca de roupas de baixo custo. Às sextas-feiras, das 16h às 21hs, ocorre no Centro de Abastecimento e lazer (Cepal) do Setor Sul a Feira do Entardecer, que conta com duzentos expositores. Estima-se que passem pela feira mais de seiscentas pessoas. Criada em 1992, a Feira da Lua conta com 1.240 barracas13, ocorre todos os sábados, na Praça Tamandaré, no Setor Oeste, das 17h às 22h. Passam pela feira cerca de dez mil pessoas por final de semana. Aos domingos, das 16h às 22hs, ocorre a Feira do Sol, na praça do Setor Oeste, com cerca de cem expositores e destinada primordialmente ao comércio de artesanatos, com uma média de visitantes de duzentas e cinquenta pessoas14.



As feiras são espaços já consagrados na cidade, mas também são prioritariamente espaços femininos, ou com presença marcante de mulheres, que ali comercializam seus produtos. No entanto, a ausência da formalidade neste tipo de atividade deixa estas expositoras e proprietárias das ‘bancas’ mais vulneráveis em
vários sentidos, incluindo aí, como detalharemos, a própria questão da segurança, mas também em relação aos desejos dos consumidores, aos modismos e ao próprio mercado de produção. Além disso, os compradores e revendedores de outras cidades e estados, os chamados sacoleiros, são um grupo também composto predominantemente por mulheres, que igualmente trabalham sem vínculos empregatícios e que não têm permanência neste ramo de atividade.

Importante destacar que a escolha pelo mercado informal por parte das mulheres e grupos excluídos, como a população negra e marginalizada, não se trata de uma escolha empreendedora mas insere-se em uma política global, resultado da adoção do modelo neoliberal e da inserção do país no processo globalizatório, apresentando como aspectos centrais: mudança no modo de acumulação de fordista para acumulação flexível, desestatização da estrutura produtiva do Estado (privatizações), aumento das construções culturais (em Goiás, construções como o Centro Cultural Oscar Niemeyer), forte ajuste fiscal (redução dos investimentos em saúde e educação) e aumento das políticas compensatórias (bolsa família em nível federal e renda cidadã em nível estadual).

Em consonância com esse quadro, levanta-se a possibilidade da mídia fortalecer a imagem da mulher empreendedora, que deve buscar sua sobrevivência, isentando o Estado da responsabilidade pela queda na
oferta de empregos formais e sem nenhuma reflexão sobre a nova configuração vigente.










NOTAS


1 Neste trabalho, entende-se a globalização como uma dinâmica de fluxo de capitais e de mercas/mercadorias e produtos culturais de todas as formas e formatos (industrializados ou artesanais) que transcende as fronteiras nacionais, e cujos resultados afetam a vida social e cultural de todos os envolvidos, ou seja, não apenas daqueles que recebem as mercadorias ou investimentos de capitais decorrentes deste processo, mas também daqueles que fazem estes investimentos ou elaboram e produzem bens e conteúdos culturais para esse consumo globalizado.

2 Cf. no site da Prefeitura Municipal: <http://www.goiania.go.gov.br/html/secom/agenda.htm> (2012).
3 As exceções seriam os programas tipicamente masculinos, como, por exemplo, algumas competições esportivas


4 Cf. no site: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_impressao.php?id_noticia=1099> (2010).

5 De acordo com a Síntese de Indicadores Sociais 2007, a população brasileira em 2006 era de 187,2 milhões de habitantes. Desse total, 96 milhões eram mulheres 
6 Dados obtidos no IBGE (site: <http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/mulher/mulherhoje.html>, 2012).
7 Dados obtidos a partir da somatória dos números apresentados no site <http://tvibopenews.wordpress.com/?s=consolidados> (2010).

8 Ver Reimão (2006).

9 O termo gênero utilizado neste capítulo diz respeito às diferenciações de características físico e culturais associadas a cada um dos sexos, reconhecendo suas características fisiológicas, mas procurando ir além de sua dimensão biológica imediata. A aplicação/utilização desta designação e sua conceituação como categoria de análise das ciências sociais começa a ser desenvolvido e/ou utilizado a partir dos anos 1970, sendo utilizado principalmente em pesquisas sobre comportamentos e diferença entre indivíduos de diferentes sexos, buscando não apenas uma nova linguagem mas sobretudo uma nova abordagem que evitasse uma visão preconceituosa na qual determinados comportamentos ‘são característicos’ ou naturais a determinado sexo.
10 Número médio de filhos que uma mulher teria ao final do seu período fértil.

11 Essas hipóteses levantadas foram pesquisadas por meio dos questionários aplicados na Feira da Lua, em Goiânia, e que serão apresentados mais adiante.
12 O termo hippie derivou da palavra em inglês hipster, que designava as pessoas nos EUA que se envolviam com a cultura negra. A palavra foi usada pela primeira vez em um jornal de São Francisco, num artigo do jornalista Michael Smith. O chamado movimento hippie surge na década de 1960 a partir dos movimentos de diversos movimentos de protesto e, em particular, protestos contra a Guerra do Vietnã. A cultura Hippie em princípio inclui a adoção de uma filosofia pacifista, um ideal de uma sociedade de paz e amor, voltada para uma vida mais próxima à natureza. Como opção para a sobrevivência, esses grupos começaram a comercializar produtos artesanais, dando origem às feiras hippies. Atualmente, várias cidades brasileiras possuem feiras hippies que ainda se relacionam com sua origem de espaço para a comercialização de produtos artesanais. No entanto, como nos indicam Carrieri, Souza e Lengler (2011), ao analisarem o desenvolvimento de duas feiras hippies, sendo uma delas nos Estados Unidos e outra no Brasil: “Já no caso da feira de Belo Horizonte, devido às significativas mudanças que já lhe ocorreram, o passado se manifesta em sua identidade atual apenas na denominação como ‘Feira Hippie’. Este também é o caso de Goiânia, cuja Feira Hippie é ocupada por pessoas que não tem qualquer tipo de relação com a Cultura Hippie original, sendo voltadas para espaços de comercialização informal, mas não necessariamente artesanal”.
13 Alguns expositores possuem mais de uma barraca.





14 Dados obtidos no site oficial da Feira da Lua (SITE: <http://www.feiradalua.net/lista_canaisI.php?canal=020909085931_tp14415>, 2012).